sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Conversa

Reis e eu estamos sentados à beira de um grande lago que reflecte o cinza platinado do céu. Ele está a olhar para o céu, calado, entretido no seu prazer íntimo. Eu olho para o lago, calada, angustiada pelo turbilhão de sensações e pensamentos que me vão ocorrendo. Nisto, indago sonoramente:
- Lembras-te da tua infância?
- Uh?! - disse, acordando do seu sonho - Sim, vagamente.
- Eu lembro-me de que a água foi uma constante durante a minha infância. Brinquei nela, chorei nela, falei com ela. Vivi nela. Era como se pudesse chegar a um mundo meu com e através da água e, nesse mundo, eu era feliz. Eras uma criança feliz?
- Sim, suponho que sim.
- Há algum episódio que te tenha marcado?
- Não. A minha infância foi normal. Sem emoções muito fortes, tirando partido das coisas boas e ignorando as más.
Calo-me por um momento, pois apercebo-me que ele não está muito falador. No entanto, não consigo conter-me. Tenho de continuar:
- O que é que somos?
- Homens. - Responde Reis - Eu sou um homem e tu uma mulher.
- Oh! Não me referia a isso... Quero saber de que somos feitos, de onde viemos, que fazemos cá ... Consideras-te boa pessoa Ricardo?
- Ai... - Suspirou.
«Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olharmos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa connosco,
Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.»
- Claro que vale a pena conhecermos... É importante. Dá sentido à vida. Qual é o sentido da tua vida?
- Madalena, fazes demasiadas perguntas. Como diz o Mestre: «O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)». Se continuares a pensar dessa maneira ainda acabas como o Pessoa.
Nesse mesmo instante aparece Fernando Pessoa no cimo do monte. Começa a descê-lo, cambaleando ligeiramente. À medida que se vai aproximando a sua face branca e olhos carregados de angústia e insónia ficam mais nítidos.
- Então Pessoa, outra insónia? - Perguntou Reis.
- Outra. - disse melancolicamente - Por acaso não viram o Mestre Caeiro?
- Não, ele está fora. Só volta ao fim do dia. Foi à cidade buscar o Campos. - Informei-o.
- Ah, pois, o Campos. Fugiu outra vez para a cidade? - Perguntou Pessoa.
- Fugiu. Eu já lhe disse que tanta euforia lhe faz mal. - Retorquiu placidamente Reis.
- Senta-te connosco Fernando. - Convidei-o.
Pessoa inclinou-se para a frente e, flectindo as magras pernas, sentou-se na relva verde.
Ficámos os três calados. Reis voltou para o seu céu, eu para o meu lago e Pessoa para ele próprio.
«Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?»
Umas horas mais tarde apareceu Caeiro, sorridente, arrastando pelo braço Campos, que ainda olhava para trás, tentando descobrir alguma réstia de cidade por entre os montes.
- Então, estão todos calados? Não me digam que estavam a pensar? - Interrogou Caeiro.
- Mestre! - Dissemos em coro.
Caeiro e Campos sentam-se ao nosso lado, virados para o lago.
- Mestre, confesso, voltei a perder o sono de tanto pensar. - Lamentou Pessoa.
- Ai Pessoa... Não procures aquilo que está à frente dos teus olhos. O «único sentido oculto das coisas/ É elas não terem sentido oculto nenhum.» Não penses, olha.
- Ó Mestre, mas ao dizer isso o mestre já está...
- Shhhh! - Sussurrou Campos - Não vale a pena tocares nesse assunto, Madalena.
- Querem dizer alguma coisa? - Disparou Caeiro.
- Sim! O mestre dá muita atenção à visão. E os outros sentidos?! Eu não gosto somente da visão! Eu sinto com tudo! Eu oiço! Eu vejo! Eu toco! Eu saboreio o «r-r-r-r-r-r-» dos motores e o «tic-tac» dos relógios! Eu...
- Já percebemos Campos. - Interrompeu Reis - Um dia destes ainda tens um ataque cardíaco.
Calámo-nos. Olhámos todos para o lago. Este, conforme o vento o acaricia, vai ondeando, revelando formas desconhecidas. Estas formas são os verdadeiros 'eus' de cada um e de todos e, desta vez, nem Caeiro se pôde esconder do seu rosto pensante.
Agora, o Mestre, pensa.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Rios

O dia estava feio. O céu estava triste e chorava para o mar agitado.
Eu estava dentro do comboio, rumo a Lisboa. A minha carruagem estava cheia com uma diversidade enorme de pessoas.
Ia eu sentada no meu cantinho, com a cara esborrachada contra o vidro, fitando aquela paisagem agreste ao mesmo tempo que ia ouvindo as pessoas que me rodeavam e, juntando água e pessoas, comecei a pensar que tipo de rio seria cada pessoa daquela carruagem.
Eram muitas pessoas, por isso, transmutei a ideia. Se as diferentes partes de Fernando Pessoa fossem rios, que características teriam?
Alberto Caeiro, homem com ares do campo, inocente, simples e contraditório. O seu rio seria calmo, fresco, mas profundo, pois o seu espírito é apenas aparentemente transparente.
Ricardo Reis, o epicurista estóico, amante da mitologia greco-romana. O rio que o representa seria sereno, transparente, vagaroso e percorreria apenas os locais mais belos para seu prazer.
Álvaro de Campos, o homem da máquina, do progresso. As suas águas seriam rápidas, um pouco turvas até certo ponto do seu caminho porque, depois, passariam a ser vagarosas, olhando sempre em direcção à sua nascente, à nostalgia da sua infância, cansadas das correrias marcadas pelos locais por onde passou.
Por último, Fernando Pessoa ortónimo, o ser atormentado pelo pensamento e pergunta, o existencialista. O rio de Pessoa fluiria, não para o mar, mas deste para a nascente, para as suas origens. Teria um ritmo incerto, águas angustiadas e agitadas.
Todas estas águas, tão diferentes umas das outras, compõem o oceano imenso que é Fernando Pessoa. Um oceano genial, sábio e riquíssimo. Um oceno único.
Fernando Pessoa.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O meu Pessoa




É profunda a minha desolação.
A evolução negativa e galopante deste mundo é deprimente. Já senti raiva, já denunciei e agora choro.
O meu corpo é lágrima seca que pesa na minha alma. Esta, tal como a arte, tem espírito livre e, como a água, flui e contorna obstáculos até encontrar um obstáculo longo de mais para conseguir desviar-se. Então bate-lhe, fica maior e empurra-o, mas o obstáculo é grande demais e esta tem de esperar até ter tamanho suficiente para chegar ao topo do muro e libertar uma gota. Essa gota irá fecundar o terreno e torná-lo belo.
Por que é a sociedade um muro tão alto? Quanto tempo ainda terei de esperar?

Quanto mais tempo espero, menos de mim vou tendo.
Os seres do meu ser não se conseguirão desenvolver, pois, neste momento, a minha alma pesa e o pensar dói.
O meu Caeiro, espírito menino, chora porque já não há flores coloridas nem pedrinhas engraçadas. O meu Reis chora porque é obrigado a rasgar a terra como o Douro barrento e Zeus foi destronado pelo ego do Homem. Sou o Campos cansado da máquina do mundo e o Pessoa preso na sua dor e pergunta, querendo aquele outrora.



Aquele outrora. Aquela ilha! Aquele tudo em nós.




sábado, 17 de janeiro de 2009

Ricardo Reis



«Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)


Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.


Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
(...)»

Ricardo Reis



Correndo e rolando e andando em direcção ao mar... Assim vive a vida. Correndo, rolando, andando e desaguando no mar. Sem paixões, nem desilusões («Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos»), aproveita os prazeres da vida e proteger-se antecipadamente do que de negativo pode adquirir dela. Equilibra, portanto, como um navio em pleno oceano, a visão estoica e epicurista («Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.»)
Tenho forçosamente de realçar um excerto de uma estrofe que faz com que a corrente sentimental do meu espírito ondeie agitadamente. Esta é :


«(...)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, (...)»


Gosto muito deste excerto porque transmite uma mensagem bastante forte e até 'negativa' da vida de uma forma muito musical, muito suave. É muito simples e claro, muito complacente.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Primeira interpretação do espírito aparentemente inocente de Alberto Caeiro


Ping! Naquele dia pachorrento sentei-me em frente da janela fria. Através dela via o céu cor fumo que chora desalmadamente. As suas lágrimas eram gordas e cristalinas e batiam pesadas contra o meu vidro frio, fazendo um poc austero para marcar presença. Depois desfaziam-se em rios que rasgavam caminhos vagarosos e engraçados ao longo da janela fria. Ai...! E a pasmaceira daquele dia era tal que o tempo, que já passava devagar, resolveu parar durante um segundo transformado em hora. E nesse segundo transformado em hora contei todas as gotas que estavam prestes a estatelarem-se no chão alcatroado que se via da janela fria. Eram duas mil setecentas e quarenta e três gotas! Também vi que forma estranha assumem essas mesmas gotas quando tocam no chão, ou no vidro da janela fria. Olhei para o céu e pude analisar os diferentes tons de cinzento daquelas nuvens chorosas e até os reproduzi com lápis de cor e pastel de óleo! Reparei como o ar quente que sai da nossa boca deixa o vidro frio embaciado e como dá para fazer desenhos! E com o dedo desenhei os caminhos impressos pelas gotas na janela fria e explorei todas as bifurcações e junções dos mesmos! Bom, no auge das minhas brincadeiras infantis, PING! Acabou tudo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Manifesto



«Nós acostumamo-nos com facilidade à preguiça da mente, sobretudo porque muitas vezes essa preguiça esconde-se sob a aparência de actividade: corremos de um lado para outro, fazemos cálculos e fazemos telefonemas. No entanto, tudo isso ocupa apenas os níveis mais toscos e elementares da mente e oculta o que existe de essencial em nós.»
Tenzin Gyatso em: O Livro de Dias, Sextante



Tantas confusões! Tantos problemas! Tanta miséria! Tanta frieza! Tanto sofrimento! E tudo isto porquê?...


Por causa da ambição desmedida, da ânsia pelo poder... Querem ser donos do mundo, donos dos homens e da Natureza....Mas porquê?



Por que quer o Homem ser dono do que é de todos? Porque quer dominar se esse mesmo domínio significa a destruição?


O Homem Ocidental é, em diversos aspectos, pouco evoluído. Não é pouco inteligente, pois realiza projectos complexos, elabora teorias políticas para equilibrar o frágil sistema capitalista, inova na ciência e na arte.... Mas é espiritualmente subdesenvolvido.
Na corrida eufórica que caracteriza o dia da sociedade ocidental, o individuo esquece-se de olhar para si, de falar consigo próprio, de vaguear no seu subconsciente que muitas vezes lhe dá as respostas que necessita para ser melhor, não profissionalmente, mas pessoalmente...
As respostas para as perguntas realmente importantes estão em nós próprios. E essas perguntas não incluem qual vai ser o valor das taxas de juro no futuro, nem se o próximo Primeiro Ministro vai fazer um bom trabalho. As perguntas que deveríamos fazer são: 'o que me faz feliz?' ou ' que posso fazer para me sentir bem comigo mesmo e com os outros?' ou ainda 'que posso eu dar ao mundo?' São perguntas difíceis de responder e que só em nós estão as respostas.

Se formos felizes, há muito mais probabilidades de as pessoas que nos rodeiam serem felizes também, porque o ser humano atrai aquilo que deseja ao mesmo tempo que influencia o ambiente que o rodeia, como acontece com todo o Universo. E é nisso que o Homem Ocidental falha. Falha porque não dá valor ao que é importante. Em vez disso preocupa-se e luta por coisas que lhe fazem mal.
É triste existirem pessoas que lutam pelo petróleo que nos prejudica tanto a nós e ao mundo, poluindo o ar e a água, matando animais e plantas.
É triste existirem pessoas que fabricam e compram armas, que fomentam guerras e morte.
É triste ver filmagens da bolsa de Nova Iorque, onde tantas pessoas gritam e desesperam desordeiramente. (Há quem compare a bolsa com a selva, mas eu discordo. A selva é bem mais tranquila!)
É triste assistir a debates do Parlamento, este que se encontra repleto de, como diria Almada Negreiros, "charlatães"," indigentes","indignos", "vendidos", "ciganões"!
E há tantas coisas tristes que não há água suficiente para afogar todas as mágoas provenientes dessa tristeza.


Pergunto: para quê lutar por uma felicidade tão imperfeita como a que nos proporciona a nossa sociedade? É apenas uma felicidade aparente, falsa...



«Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.»
Fernando Pessoa ortónimo



Estamos a seguir o caminho errado. O sonho criado por nós, de que a nossa sociedade é aquela que nos conduz à felicidade, não está correcto. A sociedade do Homem Ocidental está a ruir.

É necessária uma mudança radical.
É necessária uma harmonização com o nosso mundo, com o Universo.
É necessário sermos novos Índios e voltarmos a considerar a Terra como sendo nossa mãe, todos os seres vivos como nossos irmãos, o rio como o nosso caminho, que flui e ondeia ao sabor da vida. Devemos aprender com eles e recolher da Natureza apenas o essencial para nos mantermos vivos e saudáveis.
É necessário sermos monges tibetanos e aprendermos a meditar de forma a conhecermo-nos e a transcendermo-nos, para aprendermos a viver em paz connosco e com os outros.



A água suja do nosso ser corrompido pelo progresso desenfreado deve ser purificada!

....


Não sai nada. Tento escrever um pouco sobre Fernando Pessoa, ou qualquer outra coisa, mas não consigo. Neste exacto momento, encontro-me sentada à frente do portátil a tentar escrever alguma coisa para publicar no blog. Já fiz e refiz textos, escrevi palavras, frases, parágrafos que não têm nexo, nem interesse e muitas vezes pouco ou nada se relacionam com a água.


Pareço um rio seco. Aliás, um rio não! Um vale outrora escavado por rio e que agora, completamente ressequido, anseia desesperadamente que este volte a passar e o refresque, fecundando toda a área com uma vida nova.


Mal posso esperar que a água fresca e pura da inspiração penetre nos sulcos ávidos por imaginação do meu vale....