quinta-feira, 30 de abril de 2009

Narrador?

Autor - criador, a quem se deve a criação de uma obra.
Narrador - Aquele que narra
Narrar- expor, contar, historiar

Segundo Saramago nenhuma obra tem narrador, ou seja, na arte, quer ela seja literária ou plástica, não existe um intermediário entre o autor e o público.

Se o autor é o criador e cria um narrador para contar uma história, escolhendo as suas qualidades, ou seja, se esse narrador saberá tudo sobre o mundo da obra ou se vai saber apenas parte, se vai comentá-la ou vai ser objectivo, se se vai envolver ou se vai manter uma distância, isto é, se cria uma personagem para contar aquilo que ele criou e que terá de saber tanto quanto o próprio criador para historiar, então o narrador é o próprio autor, é parte dele.
O narrador é uma personalidade criada através da própria personalidade do autor para contar uma história ou transmitir uma opinião e mesmo que as características dessa personagem não se identifiquem imediatamente com as do autor, acredito que seja parte sua, como um heterónimo. Não é concebível, para mim, separar autor e narrador pois estão intimamente relacionados, visto que a perspectiva da história que o narrador transmite é a do autor. Os dois são um, sendo que o narrador pode ser um fragmento do autor, o que nos remete para a crença de Fernando Pessoa de que somos plurais, capazes de nos desmontar em vários seres, se o quisermos.

Assim, não posso concordar nem discordar, pois há narrador, mas este é sempre o seu autor.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Passado e Presente


Estava nossa majestade o rei D. João V no seu gabinete sumptuoso, rasgado por dois janelões ladeados por cortinas tão longas que as suas franjas douradas descansavam no chão de mármore, repleto de estantes com livros nunca abertos e um globo terrestre no centro da sala, globo este que tem duas cruzes vermelhas, uma grande sobre o Brasil e outra mais pequena sobre o continente africano, marcando desta forma os locais de onde provêm as riquezas que abastecem o reino. Bom, estava D. João V dormitando e babando no seu cadeirão de veludo vermelho, em frente à secretária de pau-brasil, totalmente adornada, quando entra pela porta o ministro real das finanças, Vossa Senhoria, diz o ministro real das finanças, Huh, ah, diga ministro, diz el-rei limpando o fio de baba que lhe escapava pelo canto da boca, Bom, trago-lhe as últimas contas do reino vossa excelência, Diga lá como vão os meus bens, Pois, majestade, não estão muito bem. As receitas do reino estão a cair e, se me permite, aconselhava-o a investir no país, disse o ministro, Hmm, entendo. Prossiga, ordenou o rei, Eu penso, vossa majestade, que vossa excelência deveria investir na agricultura e nas últimas inovações industriais, aconselhou o ministro, Ah, pois claro meu caro ministro, sei exactamente o que fazer. Vamos construir um mosteiro em Mafra, Para quem, vossa senhoria, Para os frades franciscanos, Para quê, Para eles lá viverem. A rainha engravidou, tal como eles disseram e eu fiz uma promessa, Vossa excelência, e a agricultura, A agricultura... Ah, já sei, vamos construir um aqueduto em Lisboa, agora vá falar com os restantes ministros. O ministro retirou-se e el-rei foi para a sua mesa favorita, a que tem assente a sua maqueta da Basílica de S. Pedro.


Estava o primeiro ministro José Sócrates com o seu nariz sentado na secretária do seu gabinete, olhando para o monitor do seu magalhães, quando entra o ministro das finanças, Então Zé, estás bom, Estou bem Teixeira, que queres, Olha pá, trago-te os novos números, Estou a ouvir, Então, há 450000 desempregados e há mais duas empresas em risco de falência, a agricultura está cada vez pior, assim como as indústrias, Eu tenho a solução, meu caro Teixeira, Então Zé, Vamos construir um aeroporto na Ota, Oh Zé, mas estamos em crise, É verdade, já me tinha esquecido, então vamos construir um TGV. Agora vai falar com o Lino que eu ainda tenho muitas coisas para fazer. Teixeira sai da sala e José Sócrates volta a concentrar-se no ecrã do seu magalhães. Está a jogar solitário, já só falta colocar os reis nos naipes certos. Acabou, finalmente, Ena, acabei... Porreiro pá.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O espaço e o tempo são relativos,
Eu perto de ti, tu distante de mim.
Vejo-te, teus longos cabelos morenos,
Travessão que os doma,
Que indomável é a tua natureza de mulher.
A tua silhueta fluida como tinta da china sobre papel
Plana pelas ruas, qual andar divino,
Que me faz parar e admirar,
Como pincel que percorre vagarosamente a obra de arte.

Viras-te.

Oh! Blimunda minha!
Tu que com mero olhar me despes de mim
E expões o meu sangue quente que lateja consonante com o ondear dos teus cabelos.
Blimunda! Teus olhos profundos da cor da tua alma,
Que tudo em mim vêem e não me deixam mentir,
Eles que me percorram como eu te percorro,

E descubram o que eu não consigo descobrir em mim.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Pontuação

Frase (vírgula) oração (vírgula) oração (ponto)


Assim começa, desenvolve e finaliza Saramago as suas obras, só e apenas com vírgulas e pontos. A consequência superficial desta inovação são páginas pesadas, densamente negras, que eventualmente terão um avanço, um rasgo de branco puro ao centro da página par e outro no fundo da página ímpar. A outra consequência, aquela para quem não é demovido de ler o livro apesar da sua aparência negra, é a de um ritmo de leitura bastante 'rápido', no sentido de se procurar um ritmo oral natural, falado.


São estas palavras que os alunos ouvem naquela sala sem paredes, com tecto frondoso e chão relvado. Os objectivos tiram notas mentais, dactilografando a informação na tábua da memória, secção escolar, alínea português. Os subjectivos pegam no parágrafo e levam-no pela mão para o passeio do inconsciente. Acompanharemos os últimos.

Só e apenas vírgulas e pontos, diz para si, A vírgula e o ponto constituem a base da pontuação. Pode-se tirar tudo, mas não podemos tirar a vírgula e o ponto! Isto porque estão em tudo, encontramos pausas curtas e longas em tudo, a pausa do anúncio da kitkat, o dormir e o antes de acordar, a alternância entre o inspirar e expirar, o pestanejar (vírgulas sucessivas e rápidas), as cadências à dominante e as cadências perfeitas, os goles de água e o último ahhh da garrafa. Tudo tem pausas, até o nosso andar tem um ritmo próprio, pensa para si exaltado, Acho que o meu andar é 'virgulado', porque eu até ando relativamente rápido, já o da minha professora é mais 'pontuado', mais sereno. É, é isso, tenho um andar virgulado, pensa sorrindo para si.


Os companheiros separam-se. O aluno volta para a relva e o parágrafo perde-se nas ruas da memória.

A matéria e o sonho




«Agora avançam os carpinteiros, com maços, trados e formões (...)»
Saramago, José. Memorial do Convento

Assim foi o passado Sábado na sede dos escoteiros. Logo de manhã, pegámos nos serrões, machados, formões e grosas e, até ao fim da tarde erguemos uma estrutura, um segundo andar que faz lembrar a casa da árvore, porque alguns toros ainda babam seiva cor de mel e cheiram a verde. Mas esta construção semelhante à do convento de Mafra, sólida, maciça e perene representa outra ainda maior, a da passarola, do sonho tornado realidade. Este sonho, pelo menos como eu o vejo e sinto, é a construção de um grupo digno de ser chamado escoteiro: íntegro, com pessoas verdadeiras, trabalhadoras, alegres, companheiras, motivadas, respeitadoras, altruístas, enérgicas e com tantos outros adjectivos que vos assaltem a memória quando pensam no escotismo. E se me disserem que o meu sonho é utópico respondo que a construção da passarola também era utópica e Leonardo DaVinci tinha, para os seus contemporâneos, uma imaginação muito fértil ao conceber os estudos para as suas passarolas e, no entanto, a passarola e os esboços de DaVinci passaram a aviões e helicópteros e voaram, passando pelos planos ficcional e fantástico de Saramago.


O meu sonho e ambição por uma sociedade melhor é como a passarola, não só por ser um projecto considerado por muitos impossível, mas também porque tal como a máquina necessita do éter para planar, também a sociedade necessita de se tornar mais etéria e distanciar-se da matéria para evoluir e, se os meus desejos são passarolas, então eu sou o seu DaVinci, o seu arquitecto louco e divagador, divagador, divagador, divagadora. E se divago!

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Surpresas


Numa transição de um período para o outro, deixo-vos um gostinho da dimensão poética de José Saramago com o poema 'Intimidade':

«No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.»
José Saramago

Consultado em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/j.saramago.html



"Procuro a tua mão, decifro a causa/ De querer e não crer, final, intimidade". Ora que situação embaraçosa esta! Eu que mesmo reconhecendo a sabedoria de Saramago, nunca simpatizei com a sua obra, vejo-me pegar numa das suas várias mãos (a memorial!) e querer ganhar a sua intimidade! Se no início pegava nela por obrigação, como tive de pegar na da minha mãe para atravessar a estrada, quando pequena, agora pego na memorial com carinho, arrastando os olhos e os dedos vagarosamente, apreciando a estética sólida da página, as veias pretas donde fluem vocábulos ricos, nutrientes para a minha alma de artista e vejo-me a desejar entrar na sua história, vivê-la enquanto a leio em vez de lê-la de rompante para ir viver noutro lado qualquer.
Já nada me surpreende e como diz Pessoa e muito bem: "primeiro estranha-se, depois entranha-se".