quarta-feira, 15 de abril de 2009

Surpresas


Numa transição de um período para o outro, deixo-vos um gostinho da dimensão poética de José Saramago com o poema 'Intimidade':

«No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.»
José Saramago

Consultado em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/j.saramago.html



"Procuro a tua mão, decifro a causa/ De querer e não crer, final, intimidade". Ora que situação embaraçosa esta! Eu que mesmo reconhecendo a sabedoria de Saramago, nunca simpatizei com a sua obra, vejo-me pegar numa das suas várias mãos (a memorial!) e querer ganhar a sua intimidade! Se no início pegava nela por obrigação, como tive de pegar na da minha mãe para atravessar a estrada, quando pequena, agora pego na memorial com carinho, arrastando os olhos e os dedos vagarosamente, apreciando a estética sólida da página, as veias pretas donde fluem vocábulos ricos, nutrientes para a minha alma de artista e vejo-me a desejar entrar na sua história, vivê-la enquanto a leio em vez de lê-la de rompante para ir viver noutro lado qualquer.
Já nada me surpreende e como diz Pessoa e muito bem: "primeiro estranha-se, depois entranha-se".

2 comentários:

Renato disse...

Eu bem te avisei que, mais cedo ou mais tarde, Saramago se entranha mesmo... ;)

Anónimo disse...

Também os livros precisam de ser conhecidos para serem amados. Como as pessoas...
Gostei desta introdução poética a Saramago (que te convido a ler na aula, pode ser?)e da tua reflexão, bem como da relação honesta que tens estabelecido " com Saramago"; para quê fingir-se que se gosta quando não se gosta? De facto... esta é a única forma de vir a gostar. Está a resultar!