Reis e eu estamos sentados à beira de um grande lago que reflecte o cinza platinado do céu. Ele está a olhar para o céu, calado, entretido no seu prazer íntimo. Eu olho para o lago, calada, angustiada pelo turbilhão de sensações e pensamentos que me vão ocorrendo. Nisto, indago sonoramente:
- Lembras-te da tua infância?
- Uh?! - disse, acordando do seu sonho - Sim, vagamente.
- Eu lembro-me de que a água foi uma constante durante a minha infância. Brinquei nela, chorei nela, falei com ela. Vivi nela. Era como se pudesse chegar a um mundo meu com e através da água e, nesse mundo, eu era feliz. Eras uma criança feliz?
- Sim, suponho que sim.
- Há algum episódio que te tenha marcado?
- Não. A minha infância foi normal. Sem emoções muito fortes, tirando partido das coisas boas e ignorando as más.
Calo-me por um momento, pois apercebo-me que ele não está muito falador. No entanto, não consigo conter-me. Tenho de continuar:
- O que é que somos?
- Homens. - Responde Reis - Eu sou um homem e tu uma mulher.
- Oh! Não me referia a isso... Quero saber de que somos feitos, de onde viemos, que fazemos cá ... Consideras-te boa pessoa Ricardo?
- Ai... - Suspirou.
«Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olharmos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa connosco,
Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.»
- Claro que vale a pena conhecermos... É importante. Dá sentido à vida. Qual é o sentido da tua vida?
- Madalena, fazes demasiadas perguntas. Como diz o Mestre: «O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)». Se continuares a pensar dessa maneira ainda acabas como o Pessoa.
Nesse mesmo instante aparece Fernando Pessoa no cimo do monte. Começa a descê-lo, cambaleando ligeiramente. À medida que se vai aproximando a sua face branca e olhos carregados de angústia e insónia ficam mais nítidos.
- Então Pessoa, outra insónia? - Perguntou Reis.
- Outra. - disse melancolicamente - Por acaso não viram o Mestre Caeiro?
- Não, ele está fora. Só volta ao fim do dia. Foi à cidade buscar o Campos. - Informei-o.
- Ah, pois, o Campos. Fugiu outra vez para a cidade? - Perguntou Pessoa.
- Fugiu. Eu já lhe disse que tanta euforia lhe faz mal. - Retorquiu placidamente Reis.
- Senta-te connosco Fernando. - Convidei-o.
Pessoa inclinou-se para a frente e, flectindo as magras pernas, sentou-se na relva verde.
Ficámos os três calados. Reis voltou para o seu céu, eu para o meu lago e Pessoa para ele próprio.
«Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?»
Umas horas mais tarde apareceu Caeiro, sorridente, arrastando pelo braço Campos, que ainda olhava para trás, tentando descobrir alguma réstia de cidade por entre os montes.
- Então, estão todos calados? Não me digam que estavam a pensar? - Interrogou Caeiro.
- Mestre! - Dissemos em coro.
Caeiro e Campos sentam-se ao nosso lado, virados para o lago.
- Mestre, confesso, voltei a perder o sono de tanto pensar. - Lamentou Pessoa.
- Ai Pessoa... Não procures aquilo que está à frente dos teus olhos. O «único sentido oculto das coisas/ É elas não terem sentido oculto nenhum.» Não penses, olha.
- Ó Mestre, mas ao dizer isso o mestre já está...
- Shhhh! - Sussurrou Campos - Não vale a pena tocares nesse assunto, Madalena.
- Querem dizer alguma coisa? - Disparou Caeiro.
- Sim! O mestre dá muita atenção à visão. E os outros sentidos?! Eu não gosto somente da visão! Eu sinto com tudo! Eu oiço! Eu vejo! Eu toco! Eu saboreio o «r-r-r-r-r-r-» dos motores e o «tic-tac» dos relógios! Eu...
- Já percebemos Campos. - Interrompeu Reis - Um dia destes ainda tens um ataque cardíaco.
Calámo-nos. Olhámos todos para o lago. Este, conforme o vento o acaricia, vai ondeando, revelando formas desconhecidas. Estas formas são os verdadeiros 'eus' de cada um e de todos e, desta vez, nem Caeiro se pôde esconder do seu rosto pensante.
Agora, o Mestre, pensa.