sábado, 21 de fevereiro de 2009

Sonho, Baixa, Pessoa e Eu




Um dia a preto e branco, como uma fotografia antiga. Local: Lisboa. Estava a passear pelo Terreiro do Paço, a fitar o estuário do Tejo cinzento e calmo. Olhei para trás e vi o arco do triunfo que dá para a Rua Augusta. Senti um calor avermelhado no peito ao contemplar tal grandiosidade e beleza: uma fileira de arcadas aconchegavam-me e dirigiam o meu olhar para o grande arco. Andei na sua direcção como se estivesse hipnotizada, ficando mais pequena à medida que a sua imponência de pedra me engolia. Foi então que eu vi. Vi-o a sair do café de cabeça baixa, olhos presos no chão. Caminhava rápido e lançava pequenos olhares para trás, como se estivesse a fugir da sua própria sombra. Pus-me no seu caminho e, quando me alcançou, parou.

-Bom dia Madalena! - disse, sobressaltado com a minha presença inesperada.

- Bom dia! Estavas a fugir de quem?

O homem sorriu ligeiramente. Nunca foi muito expansivo em público.

- De mim, suponho. E dos outros também.

-Posso fugir contigo até ao fundo da rua?

-Claro.

Começámos então a nossa escapadela pela Rua Augusta. Começou a chover. À medida que a chuva caía e cantava na calçada, as pessoas corriam para os cafés para se abrigarem. Mas eu e Fernando Pessoa continuámos a passear no meio da rua.


- Gosto de andar à chuva. Principalmente quando chove assim, 'a potes'. - disse, olhando para ele- Fernando, estás tão cabisbaixo hoje... Passou-se alguma coisa?

- É a Ofelinha.... - disse baixinho, olhando para o chão.

- Ah... - intervim, ficando esclarecida. Calei-me.

Estávamos a andar, ambos calados. Pessoa tinha a sua máscara posta. Estava pesaroso, era notório, mas a sua mente é tão complexa e misteriosa que cria uma camada de água turva que nos impede de ver o fundo.
Inclinei-me até conseguir olhar para o rosto dele e sorri-lhe.

- Olha para o céu. Sente a chuva e não penses por um momento.

Não me respondeu, mas olhou para cima, para as nuvens chorosas.

- Como te sentes?

- Mais leve. Estava tão absorvido em mim que não reparei na chuvada que está a cair.

Fomos assim ao longo da rua, postura direita, sorriso leve, calados, a apreciar a rua deserta e a ouvir a melodia da chuva.
No entanto, de uma das transversais, cortou um guarda-chuva preto o horizonte chuvoso. O ponto preto começou a dirigir-se na nossa direcção. Já não era só um ponto preto, ou um guarda-chuva. Era um homem. Era Ricardo Reis!

- Então, estão os dois à chuva? Metam-se debaixo do chapéu. Se ficarem à chuva apanham uma pneumonia.

- Obrigado Ricardo, mas eu e a Madalena preferimos ficar a apanhar chuva. Não quer experimentar?

- Não, muito obrigado. Não é das coisas que me dê mais prazer. Além disso, não quero ficar doente. Acho que vão precisar de mim saudável mais tarde para tratar de vocês. Até logo.

- Até logo Ricardo. - despedi-me.

- Se calhar o Ricardo tem razão. É melhor irmo-nos abrigar.

- Disparates! Já reparaste que está tudo cinzento? Até nós estamos cinzentos.

- Sim, pois estamos. Mas o que é que isso quer dizer?

- Bom, nós não somos cinzentos. O meu cabelo é castanho, assim como o teu, os meus olhos são esverdeados e os teus castanhos, a nossa pele é 'salmão', e por aí a diante.

- Então o que é que se passa? Porque é que estamos cinzentos?

- Deve ser um sonho. Não sei se é teu, se meu, se de um desconhecido.

- Ah, sim! E se estamos num sonho, não podemos ficar doentes, por isso, podemos andar à chuva o tempo que quisermos.

-Melhor! Podemos fazer o que bem entendermos porque as pessoas que vemos não são reais, logo não temos de nos preocupar com as aparências. E sabes o que me apetece agora? - Fiz uma ligeira pausa - Quero dançar!

- Dançar?! Agora?

- Sim, agora. Acompanhas-me?

- Não sei, Madalena.... Os sonhos são tão irreais... Não me parece palusível. Devemos ser prudentes.

- Estamos num sonho! Podes ser tu mesmo! Podes desmascarar-te. Não tens de ter medo... Então, vens? - perguntei-lhe, estendendo-lhe a mão.

Pessoa agarrou a minha mão e conduziu-me numa dança sem regras, num estilo que só os dois entendíamos e ao som de uma melodia tão pura e única como é a da chuva caindo na calçada.

Dançámos.
Dançámos, dançámos, dançámos
E dançámos pela Baixa fora.
Dançámos todos os miradouros,
Todas as ruas,
Todos os cafés,
Todas as praças,
Todos os teatros,
Todos os cantos e recantos desta trama viva.
A Baixa.

E as pessoas não viam,
Só passavam, corriam, conversavam, riam.
Mas não viam
E não dançavam
Nem sentiam a chuva
Eram meras sombras de si próprias presas num sonho.

2 comentários:

atum disse...

excelente

atum disse...

adorei

primeiro com uma sensaçao de liberdade totalmente fantastica. depois super imaginativo. e depois a propria proguessao do texto. é que por exemplo as pessoas tarem dentro de ym sonho nao é uma ideia original. mas tu vais introduzindo isso lentamente e o leitor dá por isso e tá completamente envolvido numa historia e entao a ideia de estar dentro de um sonho passa a ser renovada, alias porque o principal nao é só isso.